quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

leitura pra que?

A paixão de ler
O discurso dominante reverencia o livro, como algo sagrado que transporta luz e saber. Por isso, quem defende a não-leitura é considerado herege ou, no mínimo, bêbado. A leitura é endeusada como o único caminho que conduz ao conhecimento. Quanto mais leitura, mais humanos somos. A ausência de leitura nos brutaliza. Mentira! Puro blá-blá-blá. A História mostra que essa moralização da leitura é falsa. Por inacreditável que pareça, muitos professores, editores e pais de família que proclamam as vantagens da leitura, raramente abrem um livro. Esse discurso é tão escandalosamente hipócrita, que dá vontade de esculhambá-lo, chutando o pau da barraca.
Qual é à crítica que faço ao ato de ler? É que como prática social, a leitura deixou de ser algo livre e prazeroso, para se tornar uma obrigação, que confere status. Virou uma atividade burocrática, cobrada pelo professor na escola, que em vez de estimular a fome, empurra goela abaixo do aluno comida de qualidade duvidosa. Assim, um escritor tão vital para nós como Machado de Assis acaba sendo odiado. A escola alfabetiza, mas raramente desperta o sabor da leitura. Se para aprender a falar os bebês tivessem que ir pra escola – meu Deus do céu! – mais da metade da população seria muda ou gaga.
Vivemos num país de forte tradição oral, que não tem o hábito coletivo da leitura. Aí, de vez em quando, Secretarias de Cultura e outros órgãos não-governamentais tentam compensar as falhas da escola, desenvolvendo, às vezes com boa intenção, campanhas inúteis e dispendiosas para promover a leitura, o que equivale a criar uma repartição pública ou uma empresa destinada a promover, por exemplo, o namoro e o beijo. O namoro precisa de promoção? Não. A gente namora porque é bom. E ponto.
Ler é que nem namorar, só tem sentido se fundamentado na liberdade, na indisciplina, na anarquia, na paixão. Querer domesticar essa paixão significa sua morte. O jornal O Globo tenta incentivar a leitura, através do projeto “Quem lê jornal sabe mais”. Sabe mesmo? Sabe o quê? Essas campanhas servem para estimular o preconceito in-su-por-tá-vel e quase racista desenvolvido por aqueles que sabem ler contra os que vivem fora do mundo do livro e da leitura, tratados como burros e inferiores. Desenvolve ainda um sentimento de culpa nas pessoas por não terem lido determinados livros.
O babaca alfabetizado
Afinal, quem lê sabe mais do que quem não lê? A leitura melhora a gente? Conversa fiada! Ler não faz ninguém melhor. A leitura em si não aperfeiçoa as pessoas, sobretudo as que se acham superiores só porque leram alguns livros. Se fosse verdade, não haveria tanta gente babaca, arrogante, pretensiosa e moralmente podre. George Bush, deputados, juízes, desembargadores, empresários – como o desalgemado Daniel Dantas – fazem parte do mundo da leitura e nem por isso merecem nossa admiração.
A leitura não cura nenhuma doença e pode até agravá-la. Quem é babaca, depois de ler fica ainda mais babaca. O mesmo acontece com os ridículos, os vaidosos, os frívolos, os pedantes, os corruptos, os bestinhas e os bostinhas. Nós somos aquilo que somos, independentemente da leitura. Ler não serve pra nada, é um vício, uma perdição, uma felicidade. O único motivo pelo qual alguém pode se interessar por um livro é a dimensão mágica de seu conteúdo, a perplexidade, o assombro, a fantasia e a interrogação diante dos enigmas do cotidiano da vida que a leitura pode suscitar em nós.
Existem leitores ávidos, cujas virtudes humanísticas são nulas. São ratos de biblioteca, não lêem para viver, vivem para ler. Não namoram, não furunfam, não jogam nem dominó nem conversa fora com amigos. Perderam o sentido da vida. Levam vidinha superficial, cheia de preconceitos, indignidade e irracionalidade. São injustos, egoístas, soberbos e babacóides. Outros, só porque leram cinco, dez ou cem livros, assumem secretarias de cultura e se acham “os in-te-lec-tuais”. Humilham quem não leu os cem livros que eles juram conhecer.
Por outro lado, todos nós conhecemos não-leitores, dignos e justos, que possuem qualidades morais, inteligência e sensibilidade. Sou amigo de um pajé guarani, da aldeia de Biguaçu (SC), que não quis ser alfabetizado, mas é um sábio, conhece tudo do mundo, da natureza e da espécie humana; quando fala, ilumina quem o escuta, como um poderoso farol. Não leu nenhum dos 4 milhões de livros da Biblioteca Nacional, mas é um poço de integridade, de sapiência e de reserva moral. Aliás, nem o maior devorador de livros consegue em toda sua vida ler 0,1% dos livros já editados. É por isso que a chave da leitura está na não-leitura.
A não-leitura
O filósofo alemão Schopenhauer escreveu no século XIX que livro ruim é veneno intelectual, que estraga o espírito. Livros ruins, escritos apenas com o objetivo de gerar dinheiro, além de inúteis, são prejudiciais, porque para ler um livro bom, a condição é não ler o ruim, já que a vida é curta, e o tempo e a energia são escassos. Quem vive para ler, perde a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé. “Leram até ficar estúpidos” – diz o filósofo, para quem a leitura, sem a não-leitura, paralisa o espírito, da mesma forma que o excesso de alimento ou o alimento inadequado prejudica o corpo. O importante não é comer, mas digerir, não é ler, mas ruminar.
Não abrir livros é sabedoria. A escola, porém, nos ensina a ler, mas não nos ensina a não-ler. No entanto, o segredo da leitura reside ai: na não-leitura, que não é uma atitude passiva, mas ativa. Não é ausência de leitura, mas uma atividade organizadora e seletiva da leitura, para não se deixar afogar ou deformar pelos livros.
Há alguns anos dei um curso para professores indígenas, no coração da floresta. Era final de outubro. Quando cheguei, a maloca estava toda embandeirada para comemorar o dia do professor. Num lugar onde era difícil encontrar papel, as bandeirolas haviam sido confeccionadas com páginas de livros enviados por órgãos governamentais. Eram todos absolutamente inúteis. Pensei, então, que esse havia sido o melhor destino dado àquele veneno letal.
O historiador carioca Marcelo Lemos, meu amigo, cujo sobrenome é uma (in) citação à leitura coletiva, me enviou os dez mandamentos redigidos por Daniel Pennac, contendo os direitos do leitor: 1. O direito de não ler; 2 – O direito de pular páginas; 3 – O direito de não terminar o livro; 4 – o direito de reler; 5 – o direito de ler qualquer coisa, inclusive o que é considerado ruim; 6 – o direito ao bovarismo, doença textualmente transmissível; 7 – O direito de ler em qualquer lugar, inclusive na privada; 8 – O direito de ler uma frase aqui e outra ali; 9 – O direito de ler em voz alta ou em voz baixa; 10 – O direito de calar sobre aquilo que lemos, porque nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver e ninguém pode invadir nossa intimidade.
Se você dedicou preciosos minutos à leitura dessa coluna, percebeu que não estou bêbado, mas caio numa contradição. As idéias aqui expostas não existiriam sem a leitura de quatro livros abaixo mencionados. Não menciono, porém, a longa lista dos livros que deixei de ler. Só dois deles: “Presidentes da Academia Amazonense de Letras – 1918 a 2006” (Valer – Manaus, 2006) e “Titulares da Academia. Perfis Acadêmicos” (Manaus – 1997) ambos do mesmo autor, Robério dos Santos Pereira Braga. Como os novos leitores formados pela Flifloresta vão encarar esse tipo de livro?
P.S. – Ah, antes que me esqueça, a Luiza, excelente poeta, além de leitora crítica, depois entendeu que eu, naquele dia, havia bebido apenas os autores abaixo relacionados.
i) Arthur Schpenhauer (1851): Sobre livros e leitura.Tradução de Philippe Humblé e Walter Costa. Florianópolis. Paraula. 1993; ii) Pierre Bayard: Comment parler des livres que l´on n´a pas lus? Paris. Minuit. 2007; iii) Juan Domingo Arguelles: Que leen los que no leen? México. Paidos. 2003; iv) Michèle Petit: Lecturas: del espacio íntimo al espacio público. Mexico. Fondo de Cultura. 2001.
Texto de:

* JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE é Doutor doutorado em Historia na École Des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França; Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio). Lattes:  http://lattes.cnpq.br/7211811266353518 Texto originalmente publicado em http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=57