quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Cefaleia em Salvas – Anatomia do Sofrimento


Ao fim de um período de várias horas, durante as quais me sinto eufórica e exultante, experimento uma sensação de plenitude nos ouvidos, um pouco mais no direito que no esquerdo, com uma característica não diferente daquela que ocorre durante uma descida num elevador rápido.
Em seguida me dou conta de um vago desconforto na região da base do meu crânio. A sensação de plenitude também passa a irradiar-se para lá. Depois, ela estende-se para toda a cabeça, dos dois lados, embora mais intensamente à direita.
A essa altura, dois ou três minutos se passaram. Aparentemente pouco tempo, porém o suficiente para eu me dar conta de que, de fato, uma salva começou, e como sempre digo, sempre pode piorar, e nesse caso com certeza  vai.
Tal previsão me causa um dilema diante à decisão entre continuar minhas atividades ou cancelar meus planos e encontrar um lugar onde eu possa ficar sozinho, fugir com minha dor.
Eu me apercebo  dando ouvidos às alterações em minha cabeça. Estará a salva abortando-se prematuramente? Vai progredir? Vai continuar do jeito que está? Seria muita sorte.
Uma repentina punhalada, muito fugaz, atinge minha têmpora. E mais uma. A região do topo do meu crânio, e de meus molares superiores. Sempre do lado direito, as vezes ocorre de confundir, mas logo volto a senti-las mais intensamente. Outra punhalada ocorre, dessa vez nas profundezas da base do meu crânio, e rapidamente muda sua localização para uma pequena área acima de minha sobrancelha, e vão me desequilibrando.

A dor vai aumentando

Minha narina está entupida e escorrendo simultaneamente. Eu sinto que, se pudesse espirrar, minha crise iria embora. Mas, não importa o que eu faça, vejo-me completamente incapaz de induzir o espirro, e se conseguir acho que meu  cerebro pode sair junto.
Enquanto as punhaladas vigorosas continuam dessa maneira, uma crescente dor “surda” vai tomando conta da região do olho e da têmpora, perfurando, perfurando ganhando mais  área. Essa área vai gradualmente se estreitando, ao mesmo passo em que a intensidade da dor vai se magnificando. Percebo estar inclinando meu pescoço para baixo, levemente, como se minha cabeça estivesse sendo discretamente empurrada de trás. Meu pescoço, na região da base do crânio, encontra-se enrijecido. A sensação é a de estar usando um colar cervical. Sinto-me obrigado a apoiar a cabeça, tirar os rabicós se estiver usando, me livrar de brincos, blusas apertadas, mesmo sabendo que isso na verdade não me trará o menor alívio.
Na tentativa de alterar esse desconforto persistente, deixo minha cabeça cair entre as pernas, sentada ou apoiar em uma mesa, mas o que busco mesmo é o refúgio da minha cama no escuro. Meu rosto e meus olhos parecem encher-se de água, no entanto a dor permanece inalterada.
Ao olhar no espelho, uma face fantasmagórica, lúgubre, pegajosa e pálida me olha. Minha pálpebra direita encontra-se levemente abaixada, e o branco desse meu olho encontra-se mapeado por muitos vasos vermelhos, dando a ele uma coloração rósea.
Por sentir dificuldade em ficar no mesmo lugar por muito tempo, deixo o espelho para continuar minha alternância de andar e sentar, deitar.

A cefaleia em salvas em seu grau máximo de dor

Como de costume, encontro-me dominado pelo temor adicional de que a dor nunca passará. Contudo, eu descarto completamente essa possibilidade, uma vez que, se fosse esse o caso, eu certamente me mataria, e com todos esses anos de dor, eu com certeza já o teria feito, mas sou racional, mas não nessa hora, não agora.
A dor, agora localizada em algum ponto atrás e acima do meu olho, piora.
Essa dor pode ser melhor descrita como sendo uma “força” empurrando meu olho para fora com poder tão incrível que minha cabeça parece estar se movendo para trás, para produzir resistência. A “força” vai e vem, porém a duração das exacerbações sucessivas parece aumentar. A “salva” encontra-se agora em seu pico, o qual é celebrado por uma torrente de lágrimas escorre abundante mais do  meu olho direito  do que do esquerdo. A essa altura, eu me encontro em crise há 35 minutos – e há 10 minutos em seu pico, 10 minutos que sinceramente parece uma hora em uma máquina de tortura da Idade Média , daquelas pensadas para tortura física e psicológica inimagináveis que levam à morte.
Meu esposo dá uma espreitada no quarto onde eu aguento firme. Olho para cima e vejo sua expressão de compaixão, frustração e impotência. Ele vê minha face torturada da mesma forma que eu a vi no espelho tantas vezes, no mesmo estado, mas ah essa altura não quero companhia, não quero sequer saber da existência da humanidade. Boca meio aberta, babando, face acinzentada, molhada de suor num dos lados, uma pálpebra quase fechada, inchada de dor e agonia. Ele fala, mas eu só aguento pedir sai, então ele fecha a porta e sai, sentindo-se ferido por mim, com raiva pela estupidez da ciência médica, e com sentimento de culpa – uma vez que, bem no fundo de sua mente, encontra-se a suspeita que ele talvez pudesse amenizar meu sofrimento. Minha mãe por inúmeras vezes me disse e sei que sente que ela seria a razão de meu sofrimento, mas tenho certeza que não o é mãe, na verdade nem a ciência sabe de quem é a "culpa", ou origem. Eu solto um grito por eles , mas mais por mim,hoje depois de anos sofrendo, esses gritos são abafados no travesseiro. A dor está tão incrível! De repente, vejo-me dominado por uma fúria. Levanto qualquer coisa que possa ser quebrada  e jogo-a no chão. Com um punho cerrado, esmurro a parede, por vezes bati a cabeça na parede, mas obviamente foi pior, então mais uma vez a experiência fala mais alto e outras partes do corpo são mais aconselháveis. A dor persiste.

A dor da cefaleia em salvas vai diminuindo

Os períodos de declínio da dor vão logo se tornando mais longos em duração, e eu me permito suspeitar que deixei o pico para trás – mas com cautela, uma vez que já me desapontei muitas vezes.
De fato, a dor está terminando. A descida da montanha de dor é rápida. A “força” foi-se embora. O que permanece é apenas uma dor severa. Meu nariz e olho continuam a escorrer. A estrada de volta, como em qualquer viagem, cobre o mesmo território – só que mais rapidamente. Uma dor em pontada, facilmente tolerável, é sentida e vai-se embora. A dor surda e a sensação de plenitude, a rigidez do pescoço, cada uma vai-se embora, uma por vez, deixando em troca uma agradável sensação de agulhinhas e tachinhas formigando na área de meu couro cabeludo direito – não muito diferente de quando uma perna “adormece” depois de uma caimbra. Desse modo, minha cabeça acorda após um pesadelo de tormento.
Olhos e narinas secas, deixo sair um suspiro. Recolho minha pilha de lenços de papel  e papel higiênicos espalhados por todo o chão, depositando-os num cesto. Sinto pelos inocentes objetos sacrificados,  massageio meu punho levemente machucado.

Agora luto somente com a cefaléia tensional que me acompanha durante o mês, mas essa já é outra história,
Tendo terminado a batalha e limpado o campo, abro a porta e entro novamente em meu mundo sem as salvas – até amanhã.
Espero pelo amanhã.

Juliana Abreu Pereira
26/10/2016