quinta-feira, 23 de maio de 2013

Pesquisadora Espanhola visita o MEV e a Blogueira que vos acompanha é sua anfitriã.

Sobre figueiras. Em “O tempo e o vento”, a árvore é testemunha dos acontecimentos e cenário de confidências

A figueira sob a qual Floriano Cambará e dr. Camerino conversam, em O tempo e o vento, de Erico Verissimo, traz um turbilhão de imagens e lembranças para Teresa Matarranz, que traduz para o espanhol O Arquipélago, terceira parte da trilogia. Bíblica, a figueira encerra significados que variam em diferentes culturas – significados sempre contundentes.

Teresa, que visitou o Museu Erico Veríssimo-MEV como parte de sua Residência de Tradução, apoiada pela FBN, ficou emocionada com a vida e a obra de Erico que lhe foi relatada no espaço, a visita durou menos do que gostaria e mais do que o convencional, mas supriu seu arcabouço imaginário e literário para seguir com seus trabalhos confira algumas fotos após o texto.
Teresa Matarranz*

Nos capítulos de O tempo e o vento, de Erico Veríssimo, que já traduzi, se repete uma cena: as longas conversas de Floriano Cambará com o seu padrinho, o dr. Camerino, e com o seu amigo Roque Bandeira, debaixo da figueira grande da Praça da Matriz. Não posso dizer que à sua sombra porque geralmente é de madrugada, quando a paz já retornou, quando cessou a confusão dos alto-falantes berrando notícias de comícios, marchas e dobrados marciais. Os namorados que fizeram a volta da praça já voltaram para as suas casas e estão dormindo. Só restam iluminadas as janelas do Sobrado, onde agoniza Rodrigo Cambará.

Aparecem no texto outras plantas e árvores que eu nunca vi: jacarandá, bergamoteira, cinamomo… A palavra figueira, porém, me traz um turbilhão de imagens e lembranças relacionadas com duas ilhas mediterrâneas, Samos e Formentera. O cheiro e a aspereza das folhas da figueira me transportam ao verão, com o sol a pino e o canto das cigarras. Normalmente, só conheço as árvores pelo fruto. As folhas da figueira, porém, com suas cinco pontas, são inconfundíveis, como as folhas da oliveira e da videira. Lembro um ditado em português que também existe em espanhol: “Oliveira de meu avô, figueira de meu pai, vinha que eu plantar”. As três árvores têm ressonâncias bíblicas: a figueira é a única árvore mencionada pelo seu nome no Gênesis. Quando Adão e Eva se viram nus, depois de comer o fruto da árvore proibida, entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. Mais tarde, a iconografia preferiu as folhas de videira. No Cânticos dos Cânticos, a chegada do amor é anunciada quando vicejam os frutos na figueira. Também Marcos usa a figueira como imagem: quando o seu ramo se torna tenro e as suas folhas começam a brotar, sabemos que o verão está próximo.

No meu imaginário a figueira é uma árvore pequena e com folhas. Não consigo lembrar uma figueira nua. Mas imagino que no Brasil tudo é exuberante. Procuro a palavra no dicionário Michaelis e fico sabendo que o ficus brasiliensis é uma árvore muito grande, nativa do Brasil, e cultivada noutros países, enquanto a figueira comum é uma árvore originária de Ásia, mas cultivada com muitas variedades em muitas regiões quentes do Velho Mundo e do Novo Mundo. Tem uma infinidade de variedades: figueira-brava, figueira-de-barbaria, figueira-da-índia, figueira-de-bengala, figueira-de-adão, figueira-do-inferno, figueira-maldita. Resisto à tentação de procurar as imagens; prefiro passear por Porto Alegre e as suas redondezas e interrogar os nativos sobre as árvores suspeitas de ser figueiras. Encontro também no dicionário duas expressões a respeito: “Ser uma figueira-do-inferno” para denominar a mulher estéril, e uma outra do Rio Grande do Sul, muito apropriada para a terra dos gaúchos, “plantar uma figueira”, que significa cair do cavalo.

Igualmente, encontramos ditados com respeito ao fruto: “O figo, para ser bom, deve ter pescoço de enforcado, roupa de pobre e olho de viúva”. Temos um equivalente catalão: “Una figa per ser bona ha de tenir tres senyals: clivellada, secallona i becajada pels pardals”. Na Catalunha, a figueira é considerada uma árvore maldita. A sua sombra é maligna, debaixo dela não cresce nada bom. Um ditado espanhol diz: “A la sombra de la higuera, ni te sientes ni te duermas”. Jesus amaldiçoou uma porque não tinha frutos e secou. Segundo o apócrifo “Apocalipse de Pedro”, quando brotarem os ramos da figueira seca, vai ser o fim do mundo. É a árvore dos enforcados. Judas se enforcou numa figueira; por isso os frutos são pretos por fora e sangrentos por dentro. Também, segundo a tradição, São João Batista foi degolado ao pé de uma figueira. Por isso, todos os anos, no 29 de agosto, dia de Sao João Degolado, a todas as figueiras se lhes corta um ramo.

Mas voltemos ao romance. A figueira é a testemunha de todos os acontecimentos de Santa Fé e cenário de confidências. Floriano sabe que a sombra da figueira lhe propicia uma disposição de espírito que vai levá-lo a pensar em voz alta, só que na presença de outra pessoa. Muitos anos antes o seu pai, Rodrigo, costumava fazer confissões a seu irmao Toríbio. Também conversava com o padre, como fazia o seu bisavô.

Se retrocedermos no tempo da ficção, quando Ana Terra, após uma larga travessia, chegou ao alto duma coxilha verde onde se erguiam cinco ranchos de taipa cobertos de capim, a figueira já estava ali.

* Terasa Matarranz López participa do Programa de Residência de Tradutores no Brasil, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), e verte para o espanhol, junto com Pere Comelles, a terceira parte da trilogia O Tempo e o Vento, denominada O Arquipélago, para a editora Machado Libros. Teresa é formada pelo Centro de Estudos Brasileiros de Barcelona e já traduziu Os leopardos de Kafka, de Moacyr Scliar e – também com Pere Comellas – o romance K., de Bernardo Kucinski.


Nenhum comentário:

Postar um comentário